Mario Gioia – Entrevista para CCBB SP

Entrevista CCBB - Mario Gioia

Entrevista concebida por conta da exposição “Esquinas que me atravessam” realizada no CCBB São Paulo

Por Mario Gioia

Em Esquinas que me atravessam, a nova individual do paulistano Rodrigo Sassi exibida no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), é claro um ponto de inflexão no corpus de sua obra. Ao mesmo tempo, vetores poéticos anteriormente vistos também se estabelecem com força. Como rumos mais novos, podemos atestar o mergulho no universo da gravura e um fazer escultórico mais leve, tendo como fundamentos mais que a madeira, o concreto e o metal – ao menos dos modos usualmente explorados pelo artista em obras-chave de sua trajetória.

Tal via encontra conexões até expográficas na mostra, inicialmente sediada no antigo cofre e adjacências de uma antiga instituição financeira encravada no Centro da metrópole paulistana. O sentido do público numa direção circular reforça o caráter fenomenológico proposto por Sassi ao dispor trabalhos de diferentes linguagens por entre o espaço. Terminada uma visita, o (ex) observador conseguirá perceber alguns elementos fulcrais da obra: a relação com o espaço, os diálogos com a arquitetura de eixos confinados de grandes cidades, a linha-grafia anteriormente pensada como projeto (em desenho) e concretamente transformada em outro produto, numa zona cinzenta e opaca entre meios (o tridimensional situado em algo de difícil determinação que perpassa a instalação, o objeto e a escultura).

Esquinas que me atravessam também é importante para sedimentar outras pesquisas de Sassi, após períodos de residência artística na França e nos EUA. “Trabalhos que tivessem tanto a luz quanto a sombra como elementos compositivos”, conta ele. Neste ponto, apesar de isso ser evidente em peças de grande envergadura, é relevante lembrar o tradicional processo-base da gravura quando, grosso modo, há a inversão de situações cromáticas – zonas escuras tornam –se brancas e outras mais claras se escurecem.

Se o trajeto do público é importante em sua apreensão da obra, a própria deriva do artista agora ganha contornos mais pulsantes nos trabalhos. Na série Walk the line, em especial, são decisivas as caminhadas de Sassi no interior do Estado de Nova York margeando as linhas férreas e, de lá, extraindo a matéria-prima do que se tornaria a série de pequenas peças atualmente expostas – e que, pela escala intimista, já indicam quebras em procedimentos anteriores de construção do artista. O processo pode remeter a investigações de nomes importantes da land art e da environmental art, como os dos britânicos Richard Long e Andy Goldsworthy. No entanto, o resultado dessas investigações do artista paulistano tem lastros físicos mais fortes e ligados à tridimensionalidade contemporânea.

Por fim, em séries como Cestas e peças como Qualquer dia da semana é primavera, a relação fecunda com o aspecto residual de nossa sociedade é tratado cotidianamente por Sassi no labor do ateliê. As obras citadas ganham mais leveza e a empreitada em construir cada uma delas tem uma fisicalidade mais contida, menos áspera, talvez mais refletida. Sassi parece forjar, assim, uma obra que se finca na incompletude, traçando outros volumes, formas, ritmos e projeções para além da simples reciclagem de basura, fazendo do cotidiano e elementos vestigiais um ponto de partida poético, sempre renovável e parcamente rijo ou estanque.

Como se deu seu ingresso nas artes visuais e por quê? Conte um pouco dos seus caminhos pela Faap, o convívio com artistas hoje ativos (à época, estudantes) e com professores-artistas.

O início de tudo se deu na época do colegial, quando, junto de um amigo, comecei a fazer grafites. A ideia não era desenvolver um trabalho, mas sentia que gostava daquilo. Ao mesmo tempo que percebia que a maior atração era estar nas ruas, cada vez mais me dedicava a aprimorar aquilo que, mais adiante, me levaria a cursar Artes Visuais.

Durante a graduação na Faap, meu trabalho de grafite se transformou em experimentações no campo da intervenção urbana, numa época em que utilizei distintas mídias sobre o suporte da cidade de São Paulo. Como é habitual, muito por conta das facilidades de atuação na rua, juntei-me a outros dois outros artistas da faculdade para desenvolver trabalhos de intervenções urbanas. Inicialmente era algo colaborativo, debatíamos ideias e projetos individuais. A seguir, estávamos pensando juntos e deixando nossas individualidades em prol do grupo. Atuamos como coletivo por cerca de três anos e depois cada um seguiu seu caminho. Eu ainda continuei desenvolvendo projetos de intervenções por um bom tempo. Tenho esta época como algo bem marcante na minha trajetória como artista.

Uma série-chave na sua trajetória foram as Pinturas Infiltrórias. Como foi o processo de realizá-las e por que foram importantes? Qual foi o salto desses trabalhos ainda bidimensionais para a “invasão” do tridimensional?

As Pinturas Infiltrórias foram os primeiros trabalhos que realizei fora do contexto da intervenção urbana. Este trabalho teve início em 2010, ano em que retornava de uma estadia em Londres. Minha experiência na Inglaterra teve muito a ver com o desenvolvimento desta série, não por referências trazidas de lá, mas por uma mudança de pensamento em relação ao meu trabalho.

Em 2008, quando saí de São Paulo, meu trabalho que originalmente era pensado para as ruas, muitas vezes já previa desdobramentos para serem apresentados em exposições. Ao mesmo tempo que queria fazer um trabalho popular, também queria circular minhas obras no circuito artístico especializado. Desejava tanto um retorno das pessoas nas ruas quanto dos críticos de arte. 

Ao chegar em Londres, percebi pouco em relação às praticas urbanas. O que via era sempre algo relacionado à cultura do grafite, tema que já não me interessava mais já há algum tempo. O contato com diversas outras culturas e acesso a outros artistas terminou por me influenciar mais fortemente e foi moldando minha relação com a arte e com a própria obra. Isso tudo era muito mais forte do que as ruas em si.

Ao regressar para o Brasil, processei essa experiência vivida por lá, mas sem deixar de lado minha trajetória anterior. Aí comecei a fazer este trabalho de pinturas por meio de infiltrações.

Minha ideia para essas obras era obter uma estética de degradação e de abandono provenientes de mofos e infiltrações, mas com cores que remetessem o espectador a pinturas abstratas.

A estrutura desse trabalho reproduzia uma parede com tubulação de água, em que eu infiltrava tinta colorida para que manchas aparecessem em sua superfície, compondo formas aleatórias. Por utilizar uma tinta muito aguada, os resultados eram muito próximos aos de uma aquarela, o que destoava do peso e brutalidade de seu suporte, uma forma de concreto.

Percebi os contrastes – entre o suporte de concreto e madeira e sua superfície de aspecto orgânico e leve – como algo que poderia continuar sendo explorado por meio de um viés construtivo. Comecei a pesquisar e entender um pouco mais sobre estruturas de concreto armado e sua aplicação na construção civil e, por extensão, na arquitetura, o que me levou a construir formas de concreto que se conectavam umas às outras, criando estruturas que se sustentavam no espaço. Mais para frente, os tridimensionais, ainda em caráter experimental, foram ganhando referências e conceitos, se moldando e se transformando no que venho fazendo hoje.

Podemos falar de artistas importantes em seu percurso? Quais eram antes, quais são agora, como evoluíram tais influências?

No começo olhei muito para o que de alguma forma poderia me servir como referência e artistas que trabalhassem conceitos que iam ao encontro do que eu buscava. Tinha Gordon Matta-Clark [1943-1978] como o personagem que resumia tudo aquilo que eu queria como artista. As obras dele apontavam para uma problemática da época em relação ao espaço e, através de recortes nas estruturas de edifícios, ele desconstruía ao mesmo tempo que reconstruía espaços. Tais trabalhos tinham uma coisa underground e ao mesmo tempo uma precisão cirúrgica, aquilo me parecia incrível.

Junto dele, por razões específicas relacionadas à obra de cada um, também estava em minha lista Richard Deacon, Martin Puryear e Theaster Gates. Pensando nos brasileiros, José Resende, Angelo Venosa, Ernesto Neto e Henrique Oliveira podem ser citados.

Minha relação com Henrique vai além da admiração pelo trabalho. Fora ele ser um grande amigo, tive a oportunidade de trabalhar em alguns de seus projetos como assistente, o que foi muito importante na minha trajetória. Levo essa época em que passamos trabalhando juntos como uma extensão da minha formação, aprendi muito ao seu lado.

Hoje busco referências em outras fontes que não diretamente do circuito artístico. Assim, pesquiso arquitetos como Frank Gehry, Zaha Hadid [1950-2016], Norman Foster e Santiago Calatrava, entre outros. Voltando para os artistas, tem despertado meu interesse a produção do Véio, de Sergipe, e, mudando completamente, quem me vem a cabeça é o ganês El Anatsui. O trabalho dele é quase de tapeçaria. Também destacaria o Andy Goldsworthy, ligado à land art e à environmental art. Todos estes têm como matéria-prima materiais achados, que ressignificados carregam o discurso de cada um.

Não acredito que minhas referências mais antigas sejam esquecidas. Avalio que, de acordo com o que vou me relacionando de elementos de outros artistas, meu repertório é ampliado e desperta outros interesses no meu fazer artístico.

Na experiência das residências no exterior, creio que algumas transformaram mais nitidamente seus trabalhos – a última, nos EUA; e uma anterior, na França. Poderia explicar mais detidamente sobre os processos e os resultados, de certa forma, distintos?

Essas experiências sempre são positivas para o trabalho de qualquer artista. Em geral, é um tempo para experimentar, muitas vezes sem um compromisso de “acerto”. Às vezes, somos atropelados por uma demanda que não nos permite parar para tentar algo novo e tendemos a cair na mesmice. Não só o trabalho fica estagnado, como começa a deixar de desafiar o artista, torna-se chato.

A bolsa que ganhei da Faap para residir na Cité dês Arts de Paris, em 2014, foi uma oportunidade incrível de pesquisa. Visitei catedrais góticas e o que muito me atraiu nas construções foram os vitrais e a relação arquitetônica e espacial com a luz. Aquilo me parecia uma iluminação própria, como que gerada por eles mesmos e não pela condição climática exterior. Existia uma importância enorme naquelas cores e em suas intensidades. Para mim, aquilo é que dava o clima na coisa toda. Reflexões sobre tais pontos me levaram a desenvolver trabalhos que se autoiluminassem, que tivessem tanto a luz quanto a sombra como elementos compositivos.

Como desdobramento, incorporei ao meu trabalho sistemas prediais de iluminação. Isso se deu, por exemplo, em uma instalação desenvolvida para a Red Bull Station em 2015, intitulada Tudo aquilo que eu lhe disse antes mas nem eu sabia, e em uma escultura apresentada no Centro Cultural São Paulo, no ano de 2017: Mesmo com dias maiores que o normal.

Já nos Estados Unidos a experiência na residência Sculpture Space, em 2016, foi bem diferente, muito mais dinâmica e intuitiva. Esta é uma residência voltada para escultores e conta com uma grande estrutura no estilo americano, com todas as máquinas e materiais de primeira linha, ateliê dos sonhos.

A residência fica localizada no norte do Estado de Nova York e é conectada tanto com a cidade de Nova York quanto com outros lugares ao seu redor por uma malha ferroviária que corta a cidade. A paisagem era linda e me agradava fazer caminhadas pelos trilhos. Comecei a coletar estacas de dormentes e outros metais que ficavam espalhados nas linhas para levar para o ateliê. Era um processo quase performático, no momento que não aguentava mais o peso, ia me desfazendo de algumas peças. Às vezes trocava por outras e tudo isso era parte de um processo sem saber direito o que fazer com o que carregava.

No ateliê, aprendi a soldar e fiquei a maior parte do tempo fazendo testes que geraram a série Walk the line, apresentada pela primeira vez aqui no CCBB paulistano. Os trabalhos foram não só uma descoberta de possibilidades com metal, mas também mudaram minha relação com a escala das minhas obras. Antes eu tinha de me deslocar ao redor das esculturas para poder percebê-las e trabalhar sobre elas. Nessa série, eu as resolvia sobre uma mesa.

Voltei para o Brasil e a primeira coisa que fiz foi comprar uma máquina de solda. Em dois meses que passei lá, descobri um novo viés para meu trabalho, uma junção híbrida que funde madeira e concreto (já característicos de meu trabalho) ao metal, numa mesma composição. Ainda hoje me vejo imerso nesta pesquisa e disso tenho extraído repertório para outras obras ainda em andamento. Como desdobramento disso, vem a escultura Todo dia da semana é primavera, apresentada inicialmente nesta exposição. 

A leveza parece ser determinante em Esquinas que me atravessam. Nesse sentido, poderia falar mais sobre a série Cestas? E, ao mesmo tempo, tem um vigor muito físico e de escala ambiciosa a obra Corpo acomodado, central na mostra. Como você relaciona trabalhos aparentemente tão distintos?

 O peso em contraponto com a leveza sempre foi uma questão que esteve implícita em minhas obras. Normalmente, são abordados em um mesmo trabalho em que há contrastes por meio de suas composições (aparentemente leves) e as dificuldades impostas por seus materiais (fisicamente pesados). Nos trabalhos apresentados agora, a questão é abordada tanto em obras isoladas como na relação criada entre os trabalhos, sendo dispostos lado a lado.

Corpo acomodado é o trabalho da exposição que mais reflete minha produção e pesquisa. Há um esforço em se adequar ao espaço expositivo quase sem deixar respiros para o espectador, que pode explorar os diferentes ângulos e pontos de vista da obra. É um trabalho de certa forma bruto, feito em madeira e concreto, utilizando técnicas arquitetônicas de fabricação de formas de concreto armado. Os moldes, que compõem a obra, possuem uma amarração interna feita com vergalhões, normalmente utilizados na produção de peças de cunho utilitário. Têm o intuito de dar estrutura ao corpo da peça. Os metais “fogem” do olhar, contendo-se na parte interna do objeto.

É claro que, explorando outras referências e puxando o trabalho de certa forma para algo muito mais artesanal, Cestas é um desdobramento desta etapa construtiva da minha obra, agora exteriorizando estes vergalhões e, trabalhando-os de forma independente. As peças dessa série são criadas sem o uso de soldas ou qualquer tecnologia que envolva máquinas ou ferramentas elétricas, ao contrario de outras obras anteriores. São feitas somente com barras de metal amarradas manualmente por arames umas às outras. Quanto mais pontos de conexão entre elas, mais o trabalho vai se estruturando, se enrijecendo e se moldando. No desenvolvimento de Cestas, olhei para artesanatos em palha e peças indígenas. Assim, deixei me levar por uma estética que não era minha, mas adequei isso aos materiais e à poética que venho pesquisando faz anos. O resultado alcançado é interessante, pois o metal enferrujado nos remete a fios de palha que se aproximam bastante dessas referências que citei.   

Esquinas que me atravessam certamente tem pontos de inflexão dentro do corpo da sua obra. Um deles é o destaque da gravura. Poderia comentar como se deu isso?

As gravuras são desdobramentos dos meus tridimensionais feitos em madeira e concreto. Essas esculturas são compostas por restos de madeiras reaproveitadas de obras da construção civil, que, quando descartadas, são coletadas e transformadas em releituras de estruturas feitas nas obras [de construção civil]. Assim como as esculturas que proporcionam uma sobrevida aos materiais provenientes de construções, as gravuras reaproveitam os restos dos insumos não utilizados pelas esculturas. Os recortes que sobram, agora com as formas das esculturas, são reorganizados sobre uma placa e posteriormente impressos sobre papel. As gravuras, então, se conectam tanto diretamente com as esculturas quanto com o lugar de origem dessa matéria. Podem, assim, ser percebidos em sua impressão rastros e marcas do percurso e de “vidas” passadas.

Por fim, gostaria de lembrar o que Eduardo Paolozzi [1924-2005], um importante escultor britânico, disse sobre a obra tridimensional dele em um texto chamado A metamorfose das coisas comuns, de 1959. Segundo ele: “Acredito que um artista que trabalha com objets trouvés não deve deixar-se dominar por seus materiais”.2  Essa metamorfose empreendida por um artista, num labor persistente e cotidiano de ateliê, é um ponto que posso enfatizar dentro de sua prática artística. Assim, tendo em vista que a exposição é cheia de experimentos e trabalhos que desviam, num certo sentido, do que você está acostumado a exibir, quais linhas e ideias acredita que vai desenvolver em séries futuras?

Concordo com Paolozzi. No campo da escultura é bom estar atento às infinitas possibilidades de materiais e, num certo sentido, desenvolver trabalhos que dependem de materiais encontrados, acredito ser uma saída interessante para o acaso a qualquer momento apontar novos caminhos para o artista e sua obra. Esquinas que me atravessam reflete um pouco tal procedimento, mesmo que a nova linhagem de obras tenha nascido fora do contexto paulistano. Elas foram sendo aprimoradas e tomando caminhos próprios. Como isso tudo ainda é novo para mim, é difícil dizer onde vou chegar com estes desvios. A ideia é continuar trabalhando com a cabeça aberta e disposto a mudanças. É difícil mudar algo que vai seguindo bem ou que já está consolidado. Porém, ao meu ver, o mais difícil para o artista é se ver dependente de formulas assertivas, deixar de criar desafios ou estímulos para sua obra.

  1. Entrevista feita com o autor e o artista em visitas ao ateliê da Vila Romana, em SP, e conversas por e-mail durante o primeiro semestre de 2018.
  1. CHIPP, H.B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 629.